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Novas famílias, novos papeis

As configurações familiares no início deste milénio são muito variadas e complexas. O casamento transforma- se em casamentos e muitas crianças experimentam duas vivências familiares distintas: a casa da mãe e a casa do pai.

As configurações familiares no fi­nal deste milénio são muito varia­das e complexas. Ao longo de uma vida é cada vez mais frequente “o casamento” transformar-se em “casamentos”. A família tradicio­nal transforma-se noutra de con­tornos maleáveis e dinâmicos. As crianças podem experimentar du­as vivências familiares distintas, a casa da mãe e a casa do pai. E os fi­lhos da nova união poderão ter ir­mãos residentes e irmãos de fim- de-semana… E todos acabam por desempenhar uma multiplicidade de papéis que algumas vezes não desejaram, ou sobre os quais pos­suem pouca informação.

Período crítico. A fase de transi­ção, da ruptura de uma célula fa­miliar à organização da nova es­trutura, é um período crítico, em que a definição das novas rotinas quotidianas, da gestão das emo­ções e dos medos e de encontrar o lugar de cada um na família se traduzem num esforço relacional e emocional que fragiliza todos os intervenientes. É neste período crítico que o nível de inseguran­ça emocional se acentua, como é de esperar nos processos de mu­dança. E as crianças são, infeliz­mente, os alvos preferenciais dos medos e angústias desencadeados pelas modificações profundas no seu universo socioafectivo.

Mas é sobre os adultos que gosta­ria de reflectir, pois a sua actuação pode ser determinante para que esta mudança resulte bem para as crianças, marcando a diferença entre uma “saudadezinha do pa­pá” ao adormecer, que se cura com um telefonema tranquilizante, ou o medo do abandono e do confli­to entre os pais que vão minando a tranquilidade dos mais novos. A verdade é que a qualidade da ac­tuação dos adultos depende muito da forma como gerem os seus pró­prios receios e fantasmas.

E se o novo companheiro não gosta das minhas crianças? Mui­tas vezes esta inquietação surge quando o convívio entre o novo parceiro e as crianças se intensifi­ca, nomeadamente quando come­çam a coabitar. A expectativa dos adultos em relação à intensidade dos laços afectivos é, por vezes, desadequada e origina respostas muito reactivas aos contratem­pos e ajustes que inevitavelmen­te surgem. Os afectos também se constroem e para isso é preci­so tempo.

Definir papéis. As mudanças abruptas são as mais violentas. Se já existem laços de convívio,se já pudemos observar a crian­ça a interagir com o novo compa­nheiro e gostámos do que vimos, talvez não haja motivo para gran­de inquietação. O planeamento é uma estratégia óptima para re­duzir a incerteza e os mal-enten­didos. Uma vez tomada a decisão de viverem todos juntos, é impor­tante que o novo casal se sente pa­ra conversar, definindo o papel de cada um, o exercício da autorida­de e do poder, as regras, as tare­fas, os limites a respeitar do es­paço individual. Principalmente, como agir em matérias susceptí­veis de serem fonte de desenten­dimentos — oportunidade que os mais novos geralmente aprovei­tam para “dividir para reinar” e obter coisas que de outra forma não teriam. Idealmente, e em sin­tonia com as idades das crianças, deveríamos ser capazes de dialo­gar com elas e torná-las parte in­tegrante deste processo.

Devemos deixar sempre claro pa­ra o outro o lugar que as crianças ocupam na sua vida e o quanto são importantes para si. Se o novo companheiro também tiver filhos, entenderá do que estamos a falar. Mas terá igualmente necessida­des, inquietações e expectativas relativamente aos seus próprios filhos. Um processo de negocia­ção intensa torna-se quase obri­gatório, nomeadamente enquan­to predomina o encantamento do enamoramento, que poderá facili­tar a conversa destes assuntos.

Conquista afectiva. Ser tole­rante perante uma situação que é nova para todos, onde ainda se en­saiam papéis e é natural que o ou­tro não seja perfeito, pode ser meio caminho andado para o sucesso. Para isso temos de esquecer a ten­dência generalizada entre muitos casais de fazer comparações com o “ex”, porque, apesar de desem­penhar funções parentais, o novo companheiro não é, de facto, o pai ou a mãe das crianças.

A madrasta má e o vilão também têm medos. O grande medo é ser considerado como um intruso que será rejeitado. Como tornar-se, en­tão, parte integrante da família? E se a criança não o aceita? Qual o impacto que isto vai ter na relação de casal? Estas inquietações con­tribuem para uma atitude hipervigilante, que, por sua vez, pode condicionar condutas muito reac­tivas em resposta a comportamen­tos infantis de oposição ou hosti­lidade. Estes comportamentos da criança são de esperar em qual­quer família — ainda mais numa estrutura familiar em mudança, na qual a criança ainda se sente insegura e até ameaçada — e po­dem ser interpretados numa pers­pectiva catastrófica em que é cer­to que “o miúdo vai-me odiar para sempre!”. Provavelmente a crian­ça está apenas a testar limites, ou a tentar perceber o que fazer com este tipo que, quer ela, quer even­tualmente outros adultos signifi­cativos no seu universo socioafec­tivo, responsabilizam por tomar o lugar do pai.

Conquistar estas crianças a qual­quer preço não é uma boa estraté­gia. A sedução “em esforço” não consegue ser sustentada por mui­to tempo e das duas, uma: a crian­ça sente-a como falsa e rejeita-a ou torna-se manipuladora em respos­ta à sua própria tentativa de ma­nipulação. Se encararmos logo à partida a relação com naturalida­de e com respeito, respeito por nós próprios, pela criança e pelos sen­timentos que necessitam de tem­po para amadurecer, então esta­remos a lançar as bases saudáveis para um bom relacionamento.

Direito de errar. O encontro dos sentimentos de medo da criança com as ansiedades e receios dos adultos tem que ser gerido pelo adulto. Somos nós que temos a capacidade de reflexão objectiva, que somos capazes de descentrar das nossas emoções, de sermos tolerantes e de transmitir segu­rança, de agir reflectidamente, com bom senso, ajustando as nos­sas expectativas e desejos às limi­tações e exigências da realidade, de auto-regular o nosso compor­tamento e, finalmente, exercer o poder. E como tudo isto não é fácil, temos também direito às fragilidades que habitam em to­dos nós e temos direito a errar! Não podemos é esperar que se­ja a criança a ter uma atitude ca­racterística de um adulto, mes­mo que estejamos a falar de adolescentes.

O papel do pai ou mãe é funda­mental para criar harmonia na nova família. São o seu compor­tamento e as suas atitudes que vão fornecer pistas às crianças do lugar do novo elemento na família, da sua importância, do que é e não é permitido. E é do diálogo entre o casal que nas­cem soluções criativas para as dificuldades que forem surgin­do. O grande truque talvez se­ja transformar potenciais con­flitos e agressões em problemas que necessitam de resoluções concretas. Porque este é o seu projecto e é pelo casal que a fa­mília existe.

 

Bebés. Levar um bebé para ca­sa do novo companheiro é uma situação que desencadeia medos profundos, tanto mais graves se estiverem associados a separa­ções conflituosas. Sentimentos de perda, rejeição e ciúme rela­tivos à ruptura do casal podem ser projectados nos filhos e no acto de os cuidar e partilhar.

A frustração ou sentimentos de impotência e abandono, comuns nas primeiras etapas do luto da relação, geram a necessidade de agredir aquele que “traiu” o projecto de vida a dois. Esta ne­cessidade leva a que se “instru­mentalizem” as crianças e que se façam muitas asneiras. Uma das tentações mais irresistíveis costuma ser criar aversão ao “ri­val” e ao novo lar. Ou enfatizar o distanciamento do outro pai co­mo uma troca, um abandono, sa­lientado as desvantagens de es­tar no “outro lado”.

Este tipo de estratégia tem nor­malmente dois resultados: a curto prazo a criança parece aderir e há uma recusa em estar com a “concorrência”; ou, a médio/longo prazo, se a pos­tura do “outro lado” for de to­lerância e amor, o feitiço vira­-se contra o feiticeiro. Há perda de relação e desvalorização de quem implementou esta estra­tégia. Entretanto, muito prova­velmente, viveram-se momen­tos dolorosos, alimentaram-se conflitos, criou-se desarmonia e sofrimento, pois atiçou-se o lu­me do caldeirão dos medos, dos adultos e crianças.

Contudo, devemos lembrar que ninguém pode ocupar o seu lu­gar no coração do nosso bebé, sermos o seu porto de abrigo. Ajudá-lo a enfrentar estes per­cursos com tranquilidade, não o sujeitando à violência das es­colhas impossíveis, é fundamen­tal, pois ele ama e necessita dos dois, mesmo que os dois já não sejam um.

Medos. Para neutralizar a an­gústia de não o termos sob a nossa asa protectora, devemos lembrarmo-nos de que quando escolhemos ou aceitámos ter um filho com aquele companheiro, com o qual podemos estar mui­to zangados, demos-lhe um vo­to de confiança como pai/mãe. Devemos lembrarmo-nos que o outro tem recursos que lhe per­mitiram tratar do filho conjun­to, e este precisa muito de estar com o pai/mãe em condições na­turais, em paz.

Nos pais que deixaram de viver com as crianças a tempo inteiro costuma observar-se uma ten­dência para espaçar os momen­tos de convívio com elas. Pare­ce uma reacção paradoxal, pois estamos a falar de pessoas res­ponsáveis e amantes dos seus fi­lhos. Mais uma vez, o medo tem um papel dominante na origem deste comportamento. O medo de não sermos competentes nes­te novo cenário, o medo da per­da de afecto, o medo da dor no momento da separação acciona mecanismos de defesa psicológi­cos, dos quais fazem parte a fu­ga. Ainda que fugindo ao con­fronto directo com a situação, o medo não desaparece, conti­nua lá, como que adormecido. De facto, conseguimos uma es­pécie de “alívio” imediato, mas a escassez de convívio continu­ado com os filhos acaba por tra­zer mais sofrimento e perda pa­ra nós e para eles.

O contacto com as nossas crian­ças tem um efeito psicologica­mente equilibrador. Ao vencer as primeiras etapas mais difí­ceis, a criança reafirmará o afec­to e a necessidade que tem de nós, confirmando o que sempre soubemos: que, para ela, nós somos insubstituíveis.

 Dicas para os pais:

  • Devemos ser previsíveis. Devemos evitar a todo o custo faltar aos encontros prometidos. Por, vezes as expectativas criadas são muito elevadas porque o pai ou a mãe vão estar presentes e os filhos precisam  de saber que podem continuar a contar com os pais
  • Se não pudermos de todo comparecer ao encon­tro devemos telefonar e explicar-lhe directamente a razão. Mas estas devem ser situações de excepção. É também importante deixar claro quando vai acontecer o próximo encontro.
  • Sempre que se despedirem, devemos referir “até sexta-feira!”,   para que a criança tenha uma referência concreta
  • Utilizar linguagem positiva leva-nos no reencontro, em vez de nos mostrarmos tristes porque tivemos muitas saudades da criança, transmitir-lhe a alegria que sentimos por estarem juntos
  • O importante é interagir naturalmente. Não é preciso estar continuamente a fazer programas fantásticos, que muitas vezes obrigam a esforços financeiros e psicológicos que “contaminam” os estados de espírito, deixando-nos ansiosos e criando na criança o sentimento de que tem que se divertir.

Usufruam do momento!

 

 

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