Com o aparecimento da pílula e de técnicas de reprodução medicamente assistida, aquilo que para muitas mulheres passaria despercebido passou a ser vivido como um problema real: a interrupção involuntária no início da gravidez, ou seja, qualquer momento antes das 20 semanas de gestação.
Os abortos espontâneos são muito comuns. As estatísticas mostram que para as mulheres que tomam como medida de gravidez a falta de menstruação, cerca de 15% tiveram um atraso menstrual sem uma gravidez subsequente. No entanto, o aparecimento de testes altamente sensíveis permite detectar uma gravidez ao fim de cinco ou sete dias após a fertilização do óvulo, cerca de uma semana antes do período menstrual. Se ao primeiro grupo juntarmos estas gravidezes detectadas tão precocemente, o número de abortos espontâneos sobe para 3o%.
Explicação médica. As causas deste tipo de aborto podem ser muito diversificadas e parecem não reunir consenso. Contudo, alguns estudos apontam para que cerca de metade destas situações se devam a um erro genético no momento da concepção. Trata-se da resposta da mãe natureza a esta situação, descartando o ovo que resultaria num embrião inviável ou numa criança com problemas graves.
Contrariamente ao que muitos casais julgam, o aborto não se deve, na maior parte dos casos, a atitudes erradas, ainda que a adopção de um estilo de vida saudável, no que diz respeito ao exercício, alimentação e hábitos tabágicos e alcoólicos, potcncie a fertilidade do casal. Muitos médicos consideram o primeiro aborto deste tipo como fruto do acaso, embora esta explicação seja insuficiente para os futuros pais. A avaliação médica destas situações apenas se inicia após o terceiro aborto e, mais uma vez, a hipótese de haver uma falha genética é muito grande.
Para identificar a causa dos abortos espontâneos, a mulher deve sujeitar-se a uma série de testes. Um dos primeiros factores que deve ser pesquisado é a existência de anomalias estruturais do útero, anatómicas ou não, que comprometam a implantação do embrião.
Esta parece ser a causa em 12% dos casos, apesar de muitos problemas anatómicos poderem ser corrigidos cirurgicamente.
Os níveis hormonais são outra área de investigação. Por vezes o corpo da mulher não produz a quantidade de progesterona necessária para permitir o crescimento do endométrio após a concepção. Noutros casos, um desequilíbrio da tiróide ou o aparecimento de uma diabetes também podem dar origem a este tipo de aborto. Nestes casos, a compensação hormonal e do estado metabólico em geral pode ser suficiente para que uma nova tentativa seja bem sucedida.
O estudo da mulher e do parceiro quanto a doenças sexualmente transmissíveis e outras, como a rubéola, é também necessário. Da mesma forma, o casal deve efectuar uma análise cromossómica através da determinação do cariótipo de cada um. Em alguns casos, raros, um dos cônjuges pode ser portador de uma estrutura genética anormal que poderá inviabilizar uma gravidez.
Lidar com a perda. Perder uma gravidez deixa qualquer casal numa luta intensa para recuperar o equilíbrio emocional, ao mesmo tempo que o corpo da mulher recupera das alterações físicas. Se alguns casais parecem pouco afectados pelos acontecimentos, outros experimentam sentimentos de perda que os podem levar a uma instabilidade emocional e, por vezes, uma depressão reactiva a tudo o que se passou. Muitos os casais expressam uma tristeza que até aí não julgavam ser possível sentir e esse sentimento tem tendência a agravar-se com o número de abortos.
O modo como a mulher e o seu par encaram o aborto espontâneo é geralmente diferente: a mulher necessita de rever e falar acerca da perda, enquanto o homem se mostra mais prático e orientado para ultrapassar a situação. Isto não significa que o homem não esteja a sofrer — as pessoas nem sempre ultrapassam os mesmos problemas ao mesmo ritmo ou com as mesmas soluções. De uma forma geral é o homem que consola a mulher, mas este não deve ser o único a proporcionar conforto. Cada um necessita de contar com o outro para dar suporte e conforto, encontrando um espaço em que ambos se permitam estar infelizes, estar tristes, poderem falar e confraternizarem com outras pessoas sem julgamentos de valor quanto à forma como cada um reage em determinado momento. Se já existem outros filhos, é normal que eles expressem o sentimento de responsabilidade pelo sucedido. Assim, devemos ouvir as suas preocupações e tentar explicar-lhes o que se passou. As crianças devem ter a possibilidade de partilhar e compreender a tristeza dos adultos e de expressar a sua própria tristeza.
Processo emocional. Todas as perdas representam objectivos que não foram atingidos, sonhos que se desvanecem e trazem algum pessimismo na forma de encarar o futuro. Em qualquer perda existe subjacente um processo que pode ser identificado através das seguintes etapas: choque e negação; raiva, culpa e depressão; aceitação. Cada uma destas fases é necessária para ultrapassar a perda. Leva tempo a ser superada e a forma que assume pode variar muito de pessoa para pessoa.
A patologia apenas acontece quando há fixação apenas numa destas etapas e recusa em passar à scguinte, no sentido da aceitação. Podem existir factores que favorecem essa fixação. Alguns podem ser antecipados e evitados, outros não. Se, por exemplo, se sofreu uma perda recente, e o momento do processo é o da raiva, culpa e depressão, e temos um convite para uma festa de crianças em que o ambiente não é adequado à nossa forma de estar, será melhor não comparecer à festa e sair, envolvendo-se noutras actividades que dêem prazer ao casal. No entanto, se não for possível evitar situações como esta, então será melhor encará-las como incómodos temporários inevitáveis. Percorrer o processo de luto faz parte da recuperação. Não faz desaparecer a perda nem permite esquecer, mas com o tempo permite encontrar um lugar para arrumar confortavelmente esta perda. Importa saber que todas as reacções são normais e o casal não deve sentir medo ou retracção em expressar e eventualmente expor a um terapeuta os seus medos e preocupações