Somos cada vez mais invadidos por reality shows e blogues, um fenómeno se iniciou na televisão norte-americana com o Candid Camera e está actualmente em plena expansão. Mais do que nunca, a privacidade está na ordem do dia.
As noções de privacidade e intimidade são aquisições recentes na evolução da cultura ocidental. Aliás, a título da curiosidade, antigamente as camas tinham dossel porque não existia uma dependência da casa reservada ao casal, podendo esta estar colocada num local de passagem ou partilhado por outros. Até há pouco tempo nas comunidades mais pequenas as portas não se fechavam e era comum partilhar as casas de acordo com as necessidades e o prazer da companhia. O mundo ocidental tem vindo a evoluir de uma dimensão pública para a privada. O fim dos anos 8o e o início dos anos 90, com o aparecimento da geração cocam, foi a expressão mais clara deste movimento, que atinge actualmente contornos patológicos no Japão, com os adolescentes capazes de passar dois, três ou até sete anos fechados no seu quarto sem qualquer contacto directo com o mundo exterior. O aparecimento do teletrabalho, da Internet, da televisão interactiva vieram favorecer este movimento centrípeto na vida das pessoas, do qual os portugueses não são excepção.
Paradoxalmente, ou talvez não, e na medida em que nos refugiamos cada vez mais no nosso canto, cresce o interesse por programas designados por reality shows e proliferam os blogues, verdadeiros diários online acessíveis a qualquer um na Internet. Os blogues, aliás, podem ser sinónimo de liberdade de expressão e possibilidade de exercer um direito da democracia, mas a verdade é que revolucionam o conceito de privacidade e o que podemos fazer com ela.
Quanto às “novelas da vida real”, onde um punhado de pessoas são pagas para conviverem num espaço confinado, com regras específicas e num tempo determinado, com frequência me questiono o que leva estas pessoas a fazê-lo e porque tem tanto impacto junto do público?
Definição. O processo de construção da noção de privacidade ocorre simultaneamente com o da construção da identidade e do conceito de si próprio face aos outros. É um conceito que vai sendo alicerçado em normas, valores e crenças da cultura em que vamos evoluindo e que vamos absorvendo através do meio familiar e social desde a mais tenra infância. Este é uma das características que mais cedo começa a ser estruturada na construção da personalidade do ser humano.
Muitos dos comportamentos que o bebé e mais tarde a criança desenvolvem, voltados para o auto-conhecimento do seu corpo e associados a necessidades fisiológicas, vão ser remetidos para a esfera do privado por modelação do meio social e familiar, nomeadamente no que respeita aos sentimentos de pudor. A forma como cada um vai viver a sua intimidade e privacidade são o resultado da forma como a afectividade é estimulada, como é respeitada a sua autonomia e como a família lida com os limites do próprio face aos pais e ao exterior. Recordo-me de que há algum tempo atrás senti a necessidade de trabalhar com uma mãe e um filho pré-adolescente os limites e noção de privacidade, pois havia alguma dificuldade em compreender que o espaço da casa de banho era privado e, como tal, não era o melhor local para se entrar e contar histórias ou fazer pedidos. Mas esta mãe levou cerca de dez anos para sentir que precisava de demarcar este espaço da sua privacidade.
Olhar de terceiros. Existem algumas situações de desvio à normalidade e que podem constituir-se em áreas do foro da psicopatologia. Nestas, alterações no desenvolvimento harmonioso da esfera afectiva da pessoa enquanto criança traz alterações à forma de vivenciar o desejo e a sua capacidade de se envolver numa relação afectiva plena, gerando-se, no limite, uma dissociação entre o acto sexual, a afectividade e a relação interpessoal. Subjacente está muitas vezes o medo de entrega e problemas sérios de auto-imagem e autoconfiança.
Qualquer um de nós, no entanto, tem características de voyeur e ou exibicionista em maior ou menor grau sem estarem associadas ao acto sexual. Contudo, uma das questões que se coloca na actualidade remete para que as nossas vidas possam ser alvo dos olhares de terceiros, sem o nosso conhecimento ou consentimento. E este é um assunto polémico, na medida em que ao fazê-lo atentamos contra uma das necessidades mais básicas do indivíduo, que é a segurança e a noção de controlo da sua vida. Mais uma vez, e paradoxalmente, fazêmo-lo em nome da segurança, sendo indiscutível o seu valor em casos de violência.
Mas, num sentido da perversidade, ser espiado pode ter consequências sérias ao nível de um aumento da ansiedade, alterações de humor e um crescente sentimento de insegurança por desconhecimento das intenções e consequências quem o faz. Se existir uma exposição dos factos espiados, pode haver um comportamento do indivíduo no sentido do isolamento, evitando ou recusando mesmo o contacto com terceiros.
Exibicionismo voluntário. Mas o que nos atrai nas pessoas que aceitam expor a sua vida privada? Na realidade todos somos diferentes em público e em privado. O comportamento humano é produto da personalidade, mas também do meio em que nos encontramos. E a situação contém normas, rituais, regras, crenças, etc., que são interiorizadas através do nosso processo de socialização e que nos orientam para o que pode ou não ser feito em público e em privado.
Se para cada um de nós esta é uma verdade que reconhecemos com facilidade, ficamos sempre na dúvida se o mesmo se passa com outros, especialmente quando se tratam de figuras muito mediatizadas. Assim, quando pensamos nas “novelas da vida real” ou mesmo nos blogues que proliferam pela Internet, estamos a falar da outra face da moeda, ou seja, do exibicionismo mais ou menos voluntário. Como diria Andy Warhol, todos temos direito a “15 minutos de fama”, mas esta só acontece se for testemunhada por outros e, para tal, algumas pessoas esforçam-se activamente para a conseguirem. A procura da visibilidade pública através da divulgação de pormenores do âmbito da nossa intimidade e privacidade está muitas vezes associada a ganhos secundários, sejam eles dinheiro ou o reconhecimento social. Tal permite recuperar alguma da auto-estima perdida, que se vai reconstruindo aos poucos pelo reconhecimento do público, de amigos, dos outros. Afinal, a nossa auto-estima é também resultado de um processo interactivo.